L'a Dunas (Luísa Sousa Martins) nasceu em Lisboa, que tem por sua terra oráculo, porto e pórtico das suas vi(r)agens.

Os escriptos surgem-lhe por obediência, assinalando imperativo que lhe inspira o cumprir de uma travessia revelatória de profundos, da qual se sente tão-só a decifradora e a primeira leitora.



quarta-feira, 21 de outubro de 2020

 

lembras-te de quando te regressaste? do corporares antes de te inteirares? broto a morrer para viveres? de existires a despertar? lembras-te da chegada te tocar a partida? em cada hora pressentida, desejada, erodida, descoberta, esculpida, o corpo reperdido, luz encontrada?

 

 

 

 

Era ali debaixo daquela ponte junto ao pilar onde ele ía pescar, levava a cana e a linha mas não era para apanhar peixe, apenas tempo, apanhava-o no gesto de lançar a linha ao rio, que era dourado, e no sentir a corrente das águas, que são canções imemoriais, a entoar pelas suas mãos a todo o seu corpo. Para lá chegar havia uma outra ponte que tinha de atravessar a pé e cada vez que o fazia o céu escurecia, trovejava e coriscava, a ponte abanava, ele hesitava, depois chovia, o que o acalmava, e continuava até à outra margem, altura em que o céu se abria. Depois descia pela encosta para se ir sentar a pescar o tempo. Do outro lado do pilar, às vezes, estava outro pescador do tempo, sentada, a seguir por outras linhas aquelas águas, lia.
Chovia muito quando se encontravam, quando se encostavam ambos ao pilar, cada um do seu lado, acontecia-lhes um estremecimento.
Havia uma terceira ponte.

 

 

 

O pássaro tinha-lhe anunciado, dois anos antes, muito claramente, Vai e entra naquele templo. Não houve perguntas a fazer, foi só aguardar o sinal, do tempo. E o tempo chegou, o sinal foi um nome, e logo um júbilo, seguiram-se a peregrinação e a hora, tocavam as 12 badaladas do meio dia quando a pedra e as tábuas do chão acolheram os seus pés descalços que o mesmo é dizer toda a sua existência, chegada e partida, tudo o que vira e tudo o que viria estava ali naquela barca, mulher completa, a dissolver-se.

 

 

O lugar do regresso quer-me brisa e despedida e maré, folhas caídas e cabelos brancos.

 

 

 

sentir, olhar e admirar, o que nos respira e solta, este choro da tremenda pertença