L'a Dunas (Luísa Sousa Martins) nasceu em Lisboa, que tem por sua terra oráculo, porto e pórtico das suas vi(r)agens.

Os escriptos surgem-lhe por obediência, assinalando imperativo que lhe inspira o cumprir de uma travessia revelatória de profundos, da qual se sente tão-só a decifradora e a primeira leitora.



terça-feira, 17 de janeiro de 2017



pelos áridos frescos vales da manhã esvoaçam borboletas, suas asas reverberam o sol nascente, o meu peito à bruma obriga-me à perdição, ao aprumar das costas e ao bater dos cascos,
cai-me um silêncio.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017


O melhor sitio da terra para se esconder e morrer pareceu-lhe ser aquela gruta no alto da montanha. Artemisa perdeu as feições, tornou-se barro, lama seca, de um vermelho negro, as costas com veios fundos, peito escavado. Passou anos curvada e desaparecida em seu perecimento.
Foi encontrada por Perséfone na noite que esta atendia ao grito da primavera a chamá-la para o azul da manhã e escolhera sair por aquela gruta pois dava para um céu vasto. Perséfone segurou-lhe as mãos e deu-lhe metade de uma romã, rubra, Artemisa sem levantar a cabeça. E ali ficaram silenciosas a olhar a romã, primeiro, e depois, a hora, a hora que chegara, no átrio da gruta que se abria para o azul luminoso. Artemisa levou aos lábios a romã, choraram-lhe os olhos visceralmente, viu a floresta e os pássaros, tomou-lhe uma ânsia, começou a correr pelas vertentes, instintiva, entorpecida mas veloz, um fumo branco batia-lhe nas faces, viu uma anciã, de costas, de lenço à cabeça atado ao pescoço, um homem a voltar-se para a ver, uma criança muito pequena a erguer os braços para o colo de uma mulher vestida de branco, não podia ver quem eram, surgiam e desapareciam, a preto e branco. Por fim, o leito de um riacho a arrepiar-lhe todo o corpo, as línguas doces dos cervos nas suas costas, as cores das flores a raiar e uma ursa a apontar para a lua do outro lado do sol. Artemisa apenas se lembrava de meia romã, rubra, e de umas mãos noite quente azul a clarear.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017


Estava num sótão, chão de tábuas, o sol descia em poucos raios de luz e pó de entre as telhas,
mesas, camas, cadeiras, guarda-fatos, teias de aranha, candeeiros, tapetes, quadros, arcas, dos avós,
um espelho a um canto na parede mostrava-lhe uma sombra, que se movia quando se movia,
parou, focou,
e viu,
ainda de longe,
um rosto, de mulher, olhos zangados,
a boca tinha os lábios cozidos um ao outro com um fio de lã de cor amarela,
aproximou-se,
devagar, torneando as mobílias, para ver de mais perto,
e daquele rosto zangado foi saindo dos olhos um sorriso,
e agora, tão perto, o fio de lã era um fio de creme, amarelo, que se derretia pelos lábios, doce, os lábios luziam, e o olhar, a olhar-me, de um brilho.


Salto da gazela - sonhos de uma curandeira