Estou a dormir, sonho. Acordo no sonho e observo-me a sonhar. Uma
terceira consciência dá conta de que estou a observar-me a sonhar e
dá-se, então, uma subida. A percepção é claramente de subida, ascendendo
um caudal estratificado mas sem barreiras, um fluxo livre. Nesta subida
se plasmam e reúnem as várias consciências, por momentos desaparece a
diferenciação e depois segue-se a vivência directa da memória.
Aqui, deitada, olho as paredes do sótão, encontro os rostos de antepassados
e lugares no mundo onde nunca estive mas conheço desde pequena, nestes
quadros. Vejo o meu irmão Virgílio e um cão. E vejo as mobílias, as
casas e histórias que guardam, imediatas. Vejo as traves de madeira e o
tempo em que havia apenas telhas, e as lareiras nas casas das minhas
avós, e as sopas ao lume nas panelas de ferro, as vassouras feitas de
giesta. Os sinos da igreja tocam o que já passou, a mudança, e a
inseparação, o próprio fluxo. Também o medo, como no sonho, quase uma
voragem. O meu corpo ganha consistência, sobretudo peso. Vou
levantar-me.